Mostrando postagens com marcador São Paulo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador São Paulo. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 24 de junho de 2025

O Corpo Que Sobreviveu à Dor


Quando o sentimento exaure, o silêncio vira escudo.



Chegou um ponto em que meu corpo aprendeu a disfarçar tudo o que já sentiu. Não porque a dor passou, mas porque ela deixou de ser novidade. E o que machuca mesmo é a novidade. A primeira decepção. O primeiro abandono. A primeira traição. O primeiro “não” que eu engoli em seco. Tudo isso um dia me arranhou como faca nova, afiada. Depois, só repetiu. E eu virei casca.


A imagem que tenho de mim — e que muita gente provavelmente vê — é a de uma mulher sozinha num bar, vestida de preto, costas nuas, um copo de vinho na mão, o outro braço apoiado no pescoço como quem carrega o peso do mundo sem fazer alarde. Eu não estou ali para ser vista. Estou porque não preciso mais me esconder. Passei por tanta coisa que estar sozinha virou descanso. Me vestir bem virou respeito próprio. Beber devagar virou hábito — não fuga.

Eu represento muitas. As que já gritaram, choraram, imploraram, esperaram. As que foram sensíveis demais para um mundo que exige frieza. E que hoje, ironicamente, aprenderam a sobreviver sendo exatamente isso que um dia odiaram: distantes, caladas, fortes.


Mas não se engane. A ausência de lágrima não é sinal de cura. É só o estágio final da dor. Quando já não há mais energia pra dramatizar, a ferida cicatriza torta, endurecida, discreta. Quando eu digo que “não sinto mais nada”, o que quero dizer é: “já senti tanto que perdi o termômetro”.

E talvez… talvez tudo que me aconteceu tenha sido só o carma fazendo o seu trabalho. Equilibrando o peso de tudo o que um dia eu fiz alguém sentir. Porque se tem uma coisa que eu nunca fui, é boazinha com o sentimento dos outros. Sempre fui mais preocupada em me manter viva do que em manter os outros inteiros.


E qual o mal nisso? Eu quis cuidar de mim. Me priorizar. E se por isso virei vilã nas histórias dos outros, paciência. Ninguém vai escrever minha biografia com o peito que eu tive pra aguentar o que vivi. E quem não gostou do final, que não leia o próximo capítulo.


sexta-feira, 20 de junho de 2025

Brasil

 Um governo que quer agradar todo mundo, mas desagrada até quem não pediu nada.



Vamos começar com o básico: o atual governo parece um buffet livre de intenções — tem um pouco de tudo, mas nada realmente bem temperado. A ideia era reconstruir o país depois do caos anterior, mas até agora o tijolo mais firme foi o da decepção. A economia patina como quem calçou meia em piso molhado, e o custo de vida continua subindo com a audácia de um boleto atrasado. Prometeram proteger os pobres, mas quem sente alívio mesmo são os bancos — que seguem batendo recorde de lucros, como sempre.


Na política externa, voltamos a ser “respeitados” lá fora — mas esse respeito parece aquele sorriso forçado que você dá pra visita que só reclama da casa. O governo tenta colar a imagem de pacificador e humanista, enquanto passa pano pra regimes autoritários quando convém. Diplomacia? Talvez. Covardia disfarçada de equilíbrio? Provável. E dentro de casa, o Congresso continua um circo, só que com menos graça e mais acordões. É o famoso “toma lá, dá cá”, agora disfarçado de “articulação responsável”.


A segurança pública continua sendo um samba de uma nota só: mais polícia, mais bala, menos solução. A população preta e periférica segue na mira enquanto o Estado finge surpresa com a violência que ele mesmo alimenta. E a educação? Continua sendo um PowerPoint cheio de promessas. Os professores seguem mal pagos, mal tratados e, às vezes, até agredidos — enquanto o Ministério da Educação troca de comando como quem troca de filtro no Instagram: muda a cara, mas a bagunça continua.


Agora, sejamos honestos: nem tudo é catástrofe. A volta de programas sociais foi um alívio pra quem já tava no osso. O Bolsa Família (reformulado) continua sendo uma rede de proteção necessária. E sim, a pauta ambiental melhorou — ao menos no discurso. Pararam de queimar tudo que era verde como se o país fosse um churrasco. Há esforços pra retomar credibilidade, mas sem dinheiro e com um Congresso que boicota até luz do sol, tudo vira promessa empacada.


Em resumo, o governo atual é como aquele ex que diz que mudou, mas só lavou a cara. Melhor do que o anterior? Com certeza. Suficiente? Nem de longe. O Brasil continua preso num looping entre o medo do passado e a preguiça de enfrentar o futuro. E o povo, mais uma vez, assiste à peça tentando rir pra não chorar. Ou chora rindo mesmo — que é o que nos resta com esse roteiro tragicômico.


quarta-feira, 18 de junho de 2025

VOCÊ NÃO ENTENDEU, MAS FEZ QUESTÃO DE CRITICAR MESMO ASSIM.



 Tem coisa mais irritante do que gente que não gostou de algo, mas decide criticar mesmo sem entender porcaria nenhuma do que tá falando? A pessoa não tem embasamento, não tem vivência, não tem leitura, mas tem um palanque na língua.


E o pior: vem com a ousadia de opinar alto, como se a ignorância dela fosse uma opinião válida só porque está “sendo sincera”. Meu amor, sinceridade sem noção é só grosseria disfarçada de espontaneidade.


Não gostou? Ótimo. Sai de fininho. Mas ficar espalhando asneira sobre algo que você nem se deu ao trabalho de compreender é o equivalente emocional a arrotar em público e ainda pedir palmas.

E geralmente, sabe o que está por trás dessa necessidade de criticar o que não entende? A  sensação de posse emocional.

A pessoa acha que, porque se relaciona com você — seja como amiga, namorada, colega de trampo ou stalker mal disfarçada — tem o direito de julgar tudo que você faz, fala, escreve, veste e vive. Como se você devesse satisfações constantes.

Spoiler: não devo. Nem quero.

Tô ocupada demais sendo eu — tentando não me deixar deformar pela expectativa alheia, enquanto cuido da minha mente, da minha rotina e da minha porra de paz.

Tem dias que só de ouvir um “eu só acho que…” já me sobe uma urticária.

Acha? Acha baseado em quê? Nos vídeos de 15 segundos que viu? Na sua carência mal resolvida? Ou no fato de que eu me recusei a me encaixar na imagem que você idealizou de mim?

É por isso que hoje, se alguém vem com crítica sem preparo, sem vivência ou sem intimidade suficiente, eu já devolvo com silêncio e desprezo. Porque se a pessoa não entendeu, mas insistiu em criticar, então ela não quer conversar — ela quer se sentir superior.


E nisso, querido, não participo.

Sou personagem principal demais pra ser figurante na sua insegurança.


domingo, 15 de junho de 2025

Não concordo pra agradar, nem discordo pra intimidar!

 

 Só estou sendo Eu…




Ela pode ser preta, poderosa e cheia de planos. Pode ter saído do fundo da pirâmide com os próprios dentes, ter engolido mais silêncio que ar, ter vencido o racismo disfarçado de exigência e o machismo travestido de amor. Pode ter acumulado diplomas, lutas, traumas, cicatrizes. Ter aprendido a ser bonita sozinha, inteligente sozinha, feliz sozinha. Mas no momento em que ela se permite desejar amar — e ser amada — o jogo muda. E é aqui que entra a parte que ninguém avisa: nem todo homem preto é capaz de acompanhar o processo de uma mulher preta que sabe onde quer chegar.

É importante dizer isso com todas as letras porque o senso comum ainda quer nos empurrar a ideia de que “só por ser preto, ele já entende”. Não entende. A cor da pele é um marcador histórico, não um atestado de consciência. Tem homem preto que reproduz tudo o que o homem branco ensinou: o domínio, a covardia afetiva, o ego inflado, a competição disfarçada de parceria. Tem homem preto que se sente intimidado por uma mulher preta autônoma e ambiciosa porque nunca foi ensinado a admirar uma mulher em pé — só soube lidar com a que está de joelhos.

O processo de uma mulher preta é denso. Ele não começa quando ela te encontra, começa quando ela decide se encontrar. Vem das dores não nomeadas da infância, da ausência de referências amorosas, da necessidade de se provar sempre e da solidão feminina que é preta e periférica antes de ser romântica. Se ela te escolhe, não é por carência — é por estratégia emocional. E se você não entende isso, você vira peso. E peso, ela já carregou demais.

Homens pretos que não fizeram sua lição de casa são perigosos. Eles ferem com a desculpa da sinceridade, desaparecem com a desculpa da liberdade, diminuem com a desculpa do cuidado. Dizem que estão “se resolvendo”, quando na verdade estão só adiando a responsabilidade de olhar pra dentro e entender que estar com uma preta potente não é um prêmio — é um compromisso. Um compromisso que exige inteligência emocional, masculinidade ressignificada e presença ativa. Não adianta querer desfilar do lado dela no Instagram se não consegue sustentar a conversa quando o celular está virado pra baixo.

A mulher preta com objetivos não quer um salvador, não quer um coach, não quer um dependente. Ela quer alguém que esteja em processo também. Que entenda que não é sobre dominar, mas sobre caminhar junto. Que saiba ouvir sem se sentir atacado. Que consiga admirar sem se sentir menor. Que compreenda que um relacionamento preto não é só amor, é também estratégia de sobrevivência num mundo que nos quer mortos, submissos ou divididos. E isso não se constrói com emoji de fogo e papinho de DM.

Talvez esse seja o maior desafio: filtrar o homem preto que se ama do homem preto que só se deseja. Porque tem muito corpo preto bonito carregando alma adoecida. Tem muito preto que se acha “diferente” por não ser racista com a própria cor. Mas ser preto de verdade — inteiro, presente, consciente — é outra coisa. É se posicionar. É cuidar. É acolher. E, acima de tudo, é saber que estar com uma mulher preta é um ato político. E se você não está preparado pra isso, tudo bem. Só não atrasa quem já entendeu o valor da própria jornada.

Então, sim. Uma preta com objetivos precisa de um preto que entenda o processo. Que saiba que o amor não é sobre “ganhar” uma mulher foda, é sobre estar à altura do que ela se tornou, depois de sobreviver a tudo o que disseram que ela não merecia ser. Porque o mínimo que uma preta com visão merece… é um preto que enxergue.


Eles são indispensáveis… até a gente lembrar que não são

 



Os homens são indispensáveis — foi o que me ensinaram. Que eu precisava de um ao meu lado pra ser completa, pra ser respeitada, pra ser alguém. Cresci ouvindo que um bom homem é um prêmio, e que ficar sozinha é um sinal de fracasso.


Mas acontece que, enquanto eles eram ensinados a mandar, eu aprendi a fazer. A resolver. A entender. E, no meio do caminho, descobri que saber cuidar de mim não é frieza, é liberdade. Que saber dizer não não é arrogância, é filtro. Que saber ficar só não é tristeza, é autonomia.


As mulheres se tornaram autossuficientes não porque odeiam os homens, mas porque cansaram de depender deles pra existir. A gente dirige, banca a casa, levanta filho, paga conta, toma decisões, sofre e continua linda. E quando a gente escolhe um homem, é escolha mesmo — não mais necessidade.


Eles ainda são bem-vindos. Mas só se entenderem que não são mais o centro, nem o norte. São companhia, não salvação. Parceiros, não donos. Desejo, não destino.


Porque a verdade é uma só:

eles continuam achando que são indispensáveis. E a gente, cada vez mais, aprendendo a viver sem acreditar nisso.


E o mais curioso de tudo isso é observar como, nesse processo de autonomia feminina, os homens começaram a ocupar o papel que tanto desprezaram nas mulheres.


Hoje eles se emocionam rápido, se apaixonam em três mensagens, pedem atenção como se fosse obrigação e adoecem de ciúmes por qualquer olhar. Muitos estão mais carentes do que presentes, mais exigentes do que empáticos. Querem exclusividade, mas não oferecem profundidade. Querem ser prioridade, mas somem na primeira contradição.


Enquanto as mulheres aprendem a tomar iniciativa, pagar o próprio jantar e não aceitar migalhas, muitos homens têm vivido num looping de expectativa frustrada — esperando uma mulher que cuide, compreenda, aceite e, de preferência, não questione. A mãe 2.0 disfarçada de namorada.


Estão fazendo o papel de mulher? Não. Estão fazendo o papel que diziam desprezar: o de quem não sabe se sustentar emocionalmente e espera ser salvo por alguém mais forte.


Só que agora o mais forte somos nós.


E o problema não é o homem sensível, vulnerável, que se expressa. O problema é o homem emocionalmente frágil que exige sem oferecer, cobra sem dar conta, e se ofende com a firmeza de uma mulher que não se curva.


No fim das contas, os homens não estão apenas se tornando “iguais” às mulheres. Estão se tornando aquilo que sempre julgaram fraco, enquanto a gente se transforma naquilo que eles nunca foram treinados pra lidar: independentes, diretas e inteiras.


sexta-feira, 30 de maio de 2025

A Rua Como Escolha: Quando a Calçada Vira Casa

 



Muitas vezes, ao falar de moradores de rua, nos limitamos ao olhar da piedade ou do julgamento. Supomos que toda pessoa sem teto quer, ou deveria querer, sair dessa condição. Mas e se, para alguns, essa vida já não for mais uma fase — e sim um estilo de vida?

É difícil aceitar que alguém possa ter escolhido a rua, ainda que essa escolha tenha vindo de um acúmulo de dores, decepções e portas fechadas. Mas a verdade é que o ser humano se adapta ao que vive, e com o tempo, começa a chamar de lar o que antes era só passagem. A marquise vira teto, o cobertor doado vira aconchego, a rotina da praça substitui o relógio de ponto. Há quem viva assim há anos — não mais esperando uma salvação, mas defendendo o pouco que conquistou no asfalto.

Isso não significa romantizar o abandono. É entender que a realidade das ruas não se resume à fome ou ao frio. Existe um universo próprio, com regras, laços, convivência e até certo senso de pertencimento. Muitos rejeitam abrigo não por orgulho, mas porque já tentaram se encaixar no que a sociedade oferece e foram descartados. Outros nem tentam mais. Criaram suas próprias rotinas, decidiram não depender de normas, não obedecer a um teto que cobra silêncio, hora pra dormir ou documentos em dia.

E assim como quem escolhe o campo, a praia ou a cidade grande, tem também quem fique na rua por se sentir mais livre, mais dono de si. Porque a rua, apesar de dura, oferece uma forma crua de liberdade. Pode parecer contraditório, mas tem gente que encontrou mais dignidade dormindo no chão do que mendigando respeito entre quatro paredes.

É claro que existem milhares em situação de rua que desejam sair dela, e precisam de políticas públicas urgentes para isso. Mas há também aqueles que não querem mudar — ou não veem por que deveriam. A vida os moldou de um jeito que o mundo “normal” já não serve mais. E quem somos nós para dizer que a vida deles está errada?

A gente se adapta ao que escolhe, e com o tempo, passa a defender essa escolha como um território conquistado. Talvez os moradores de rua estejam nos mostrando isso sem dizer uma palavra: que viver também é aprender a se abrigar do jeito que dá, mesmo que seja embaixo de uma ponte. Porque nem sempre a casa é onde mora o conforto — às vezes, é só onde mora a coragem de continuar.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

EP 2 - Selva de pedras, coração de concreto

 O que eu vi quando todo mundo olhava para frente 



Eu tinha acabado de chegar em São Paulo. Fazia poucos meses e tudo ainda era novidade. A cidade gigante, os prédios absurdos, as luzes, os cheiros, as pessoas — tudo em excesso, tudo vivo. Fui ao centro, como quem quer conhecer o coração de SP. E que coração estranho.

Tantas coisas bonitas. Arquitetura imponente, lojas, música, comida por todos os lados. Era tudo tão rápido. Um entra e sai de gente, passos apressados, olhos grudados nos celulares, nos relógios, nos próprios mundos. Mas no meio desse movimento todo, o que mais me chamou atenção… foi o que estava parado.

Os moradores de rua.

Eles estavam ali, como se estivessem presos numa outra velocidade. Em câmera lenta, enquanto o resto da cidade parecia acelerado em 2x. Cobertores rasgados, sujos, corpos deitados no chão frio, olhares perdidos. Não havia urgência neles. Nem pressa. Nem direção. Só existência.

E o mais estranho é que ninguém os via. Ou fingia não ver. As pessoas desviavam como se fossem postes, obstáculos. E seguiam. Rápidas, eficientes, focadas. Ninguém parecia se perguntar: quem são essas pessoas? Por que estão aqui? O que aconteceu com elas?

São Paulo não era a cidade das oportunidades?Passei por um, por outro. Um cachorro ao lado. Um papelão improvisado como cama. Um saco de roupas. Um pedaço de pão seco na mão. E a vida… continuava.

Quando cheguei em casa, não estava mais tão maravilhada. A tal “selva de pedra” começou a fazer sentido. Onde o filho chora e a mãe não vê. Onde a dor é abafada pelo barulho. Onde o que incomoda é simplesmente ignorado.

Mas São Paulo também é isso: o berço de maloqueiro bom, como dizem. Gente que luta, que corre atrás, que resiste. Inclusive eles. Os que dormem na rua. Os invisíveis. Porque não escolheram lutar do lado certo ou do lado errado — escolheram viver. Da forma mais difícil.

E, pensando bem… talvez eles tenham menos preocupações que a gente. Não pagam boleto, não batem ponto. Mas a luta deles é outra. É interna. E a mente, ah… a mente não tira folga. Trabalha 24 horas, sem hora extra, sem fim de semana. Lutar com o mundo já é difícil, mas lutar com você mesmo é mil vezes pior.

Essas pessoas são guerreiros. Guerreiros de si mesmos. Das batalhas silenciosas, das dores que ninguém quer ver, da invisibilidade, da fome, do frio, da sede, do calor, da vida.


EP 1 -Além da sujeira


 É fácil desviar o olhar. Mais fácil ainda é julgar. Os moradores de rua incomodam a paisagem, atrapalham o caminho apressado, causam desconforto por serem a lembrança viva de tudo que fingimos que não existe. Gente que perdeu o chão — às vezes aos poucos, às vezes de uma vez só. Gente que já foi como nós, e talvez ainda seja, só que do lado de fora da vitrine.

Ali, no meio do concreto, entre restos de papelão, a dignidade vai minguando junto com a esperança. Eles não sonham mais com estabilidade, carreira ou futuro — apenas com a próxima refeição. Um banho quente. Um rosto que não os veja como bicho. A rua se torna o lar porque todas as outras portas se fecharam.

Mas e nós? Que nos olhamos no espelho e tentamos disfarçar o cansaço com mais uma meta, mais um diploma, mais um “like”? Somos mesmo tão diferentes?

Vivemos num ciclo doentio: correr atrás do que não precisamos, exibir o que não somos, comprar o que não podemos, competir para manter o lugar numa corrida que não leva a lugar nenhum. O vício de ter. A roda gira, gira, gira. E dentro dela, nós. Robôs movendo engrenagens.

“A ânsia de ter e o tédio de possuir.” A frase é de Gustavo Barroso, e define perfeitamente o que nos tornamos. Alcançamos o que tanto queríamos e, logo depois, sentimos o vazio. É por isso que o processo importa mais que a conquista. É o que nos mantém vivos. Ou pelo menos distraídos da falta de sentido.

Os moradores de rua já passaram por isso. Já tentaram. Já correram. Até que cansaram. Ou foram empurrados. Ou tropeçaram e não houve quem estendesse a mão. Eles estão ali, não por escolha, mas porque o sistema não comporta os fracos, os doentes, os que falharam em performar o sucesso.

E a pergunta que fica é: somos melhores por estarmos do lado de cá? Ou somos apenas marionetes bem arrumadas de uma engrenagem desumana?

Talvez fôssemos mais felizes antes de tanta modernidade. Quando bastava caçar, colher, comer, viver. Quando o mundo era difícil, mas não cruel. Hoje, a busca por funcionalidades pra preencher vazios que não têm nome virou obrigação. E, no fim, seguimos todos exaustos, vazios e fingindo que está tudo bem.

A diferença entre nós e eles pode ser menor do que gostamos de admitir. E talvez, no fundo, o que mais nos incomoda neles… seja ver o quanto ainda há de nós ali.


terça-feira, 27 de maio de 2025

📍 São Paulo, 2020 — Liberdade com cheiro de asfalto quente


Essa foto foi tirada em São Paulo, no ano de 2020. Um ano estranho, pesado,

marcado por distâncias e perdas. Mas, pra mim, foi também um tempo de descoberta.

Ali, entre as ruas suadas da zona sul, os ônibus lotados, os sotaques cruzando avenidas — eu me senti viva. São Paulo me deu liberdade. Com todos os seus ruídos, sua pressa e sua frieza, a cidade me abraçou.

Foi lá que, pela primeira vez, senti que cabia, E ao mesmo tempo, era estranho: estar em casa tão longe de onde nasci. Porque no resto do Brasil, mesmo com a mesma língua, eu era tratada como corpo à parte. Como alguém que só serve enquanto obedece, mas que incomoda quando pensa. São Paulo me deu anonimato — e no anonimato, encontrei espaço pra ser eu. Uma mulher negra. Inteira. Sem precisar explicar nada.

🤝 Entre haitianos, eu me reconheci

Foi nessa época que me aproximei de imigrantes haitianos. Pessoas que carregam no corpo a dureza da travessia e no rosto a firmeza de quem não se curva.

Ali eu vi força. Mas não a força forçada, masculina, colonial. Vi a força ancestral, aquela que não se explica, só se sente.

A que resiste em silêncio, a que trabalha o dobro, a que dança depois de chorar.

A que tem alma, A cultura haitiana me marcou profundamente. A forma como eles mantêm viva sua língua, sua história, sua fé. Como transformam dor em ritmo, perda em comunidade. A dignidade deles não se compra, não se negocia. É dignidade de quem sobreviveu a tudo que tentaram apagar. E ao lado deles, eu percebi uma verdade cruel:

No Brasil, eu sou brasileira só no RG. Na pele, no tratamento, nos olhares, sou estrangeira, mas ali, com eles, fui vista. E mais: fui compreendida.


🇭🇹 O Haiti tem alma. E eu carrego parte dela comigo.

Essa camiseta que uso na foto foi um presente. Não só de tecido — mas de memória, é símbolo de um tempo em que eu não precisava me explicar.

De um amor que me viu além da carne. E é por isso que essa imagem não pode ser lida como simples vaidade, ela é memória afetiva, É uma declaração silenciosa de que minha identidade vai além de bandeiras. Porque eu sou feita de travessias, de luta, de corpos que vieram antes de mim.


Entre o corpo e a alma— Resquícios

Sentir, logo cedo, o pulsar do meu coração mais acelerado que antes. Ao abrir os olhos, percebo mais um lindo amanhecer. Estou imóvel por um...