quarta-feira, 28 de maio de 2025

EP 1 -Além da sujeira


 É fácil desviar o olhar. Mais fácil ainda é julgar. Os moradores de rua incomodam a paisagem, atrapalham o caminho apressado, causam desconforto por serem a lembrança viva de tudo que fingimos que não existe. Gente que perdeu o chão — às vezes aos poucos, às vezes de uma vez só. Gente que já foi como nós, e talvez ainda seja, só que do lado de fora da vitrine.

Ali, no meio do concreto, entre restos de papelão, a dignidade vai minguando junto com a esperança. Eles não sonham mais com estabilidade, carreira ou futuro — apenas com a próxima refeição. Um banho quente. Um rosto que não os veja como bicho. A rua se torna o lar porque todas as outras portas se fecharam.

Mas e nós? Que nos olhamos no espelho e tentamos disfarçar o cansaço com mais uma meta, mais um diploma, mais um “like”? Somos mesmo tão diferentes?

Vivemos num ciclo doentio: correr atrás do que não precisamos, exibir o que não somos, comprar o que não podemos, competir para manter o lugar numa corrida que não leva a lugar nenhum. O vício de ter. A roda gira, gira, gira. E dentro dela, nós. Robôs movendo engrenagens.

“A ânsia de ter e o tédio de possuir.” A frase é de Gustavo Barroso, e define perfeitamente o que nos tornamos. Alcançamos o que tanto queríamos e, logo depois, sentimos o vazio. É por isso que o processo importa mais que a conquista. É o que nos mantém vivos. Ou pelo menos distraídos da falta de sentido.

Os moradores de rua já passaram por isso. Já tentaram. Já correram. Até que cansaram. Ou foram empurrados. Ou tropeçaram e não houve quem estendesse a mão. Eles estão ali, não por escolha, mas porque o sistema não comporta os fracos, os doentes, os que falharam em performar o sucesso.

E a pergunta que fica é: somos melhores por estarmos do lado de cá? Ou somos apenas marionetes bem arrumadas de uma engrenagem desumana?

Talvez fôssemos mais felizes antes de tanta modernidade. Quando bastava caçar, colher, comer, viver. Quando o mundo era difícil, mas não cruel. Hoje, a busca por funcionalidades pra preencher vazios que não têm nome virou obrigação. E, no fim, seguimos todos exaustos, vazios e fingindo que está tudo bem.

A diferença entre nós e eles pode ser menor do que gostamos de admitir. E talvez, no fundo, o que mais nos incomoda neles… seja ver o quanto ainda há de nós ali.


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