Muitas vezes, ao falar de moradores de rua, nos limitamos ao olhar da piedade ou do julgamento. Supomos que toda pessoa sem teto quer, ou deveria querer, sair dessa condição. Mas e se, para alguns, essa vida já não for mais uma fase — e sim um estilo de vida?
É difícil aceitar que alguém possa ter escolhido a rua, ainda que essa escolha tenha vindo de um acúmulo de dores, decepções e portas fechadas. Mas a verdade é que o ser humano se adapta ao que vive, e com o tempo, começa a chamar de lar o que antes era só passagem. A marquise vira teto, o cobertor doado vira aconchego, a rotina da praça substitui o relógio de ponto. Há quem viva assim há anos — não mais esperando uma salvação, mas defendendo o pouco que conquistou no asfalto.
Isso não significa romantizar o abandono. É entender que a realidade das ruas não se resume à fome ou ao frio. Existe um universo próprio, com regras, laços, convivência e até certo senso de pertencimento. Muitos rejeitam abrigo não por orgulho, mas porque já tentaram se encaixar no que a sociedade oferece e foram descartados. Outros nem tentam mais. Criaram suas próprias rotinas, decidiram não depender de normas, não obedecer a um teto que cobra silêncio, hora pra dormir ou documentos em dia.
E assim como quem escolhe o campo, a praia ou a cidade grande, tem também quem fique na rua por se sentir mais livre, mais dono de si. Porque a rua, apesar de dura, oferece uma forma crua de liberdade. Pode parecer contraditório, mas tem gente que encontrou mais dignidade dormindo no chão do que mendigando respeito entre quatro paredes.
É claro que existem milhares em situação de rua que desejam sair dela, e precisam de políticas públicas urgentes para isso. Mas há também aqueles que não querem mudar — ou não veem por que deveriam. A vida os moldou de um jeito que o mundo “normal” já não serve mais. E quem somos nós para dizer que a vida deles está errada?
A gente se adapta ao que escolhe, e com o tempo, passa a defender essa escolha como um território conquistado. Talvez os moradores de rua estejam nos mostrando isso sem dizer uma palavra: que viver também é aprender a se abrigar do jeito que dá, mesmo que seja embaixo de uma ponte. Porque nem sempre a casa é onde mora o conforto — às vezes, é só onde mora a coragem de continuar.

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