sábado, 14 de junho de 2025

Rotina de uma quase deusa, cansada


 Acordo todo dia às 05h da manhã, não porque sou uma monja iluminada, mas porque o mundo decidiu que produtividade começa antes do sol nascer. Medito por meia hora, tentando não pensar em boletos, problemas familiares, falta de dinheiro e o futuro do planeta. Falho miseravelmente, claro.

A outra meia hora é dedicada ao planejamento do meu dia. Uma folha cheia de metas nobres e listas coloridas que, sinceramente, já sei que não vão se cumprir. Mas sigo fingindo que controlo minha vida — é o que temos.


Às 06h levanto, passo meu skincare como se minha cara de sono tivesse salvação e às 06h30 o café tá pronto. Tomo banho como uma heroína cansada e tomo meu café vendo desenho animado, porque a realidade já é animada demais pro meu gosto.


Depois, levo minha cria no ponto de ônibus com cara de mãe plena, mas por dentro já pensando em desistir de tudo. Às 08h desço pra academia — meu palco, meu templo, meu momento com as marombeiras que agora são minhas best. Falo, treino, rio, reclamo, treino de novo. Uma hora e meia fingindo que tô só pela hipertrofia, mas na real tô ali pra socializar e fugir da rotina.


Volto pra casa às 10h, com uma fome que não respeita dieta. Como o que tiver — se der tempo, mastigo. Verifico as mensagens mais importantes, finjo que sou uma influencer ocupada, escrevo pro blog com uma sinceridade que beira o crime… e depois? Se tem algum trampo, faço. Se não tem? Desenho de novo.


Às 11h encaro a farsa chamada “almoço saudável” e às 12h pego a gata no ponto. Almoçamos como se a vida fosse leve, e depois me dou o luxo de ver o novo vídeo do canal do Mano Joselino, que fala mais verdades que muito coach por aí. A tarde começa com gratidão, banho nos dogs, hortaliças vivas e a casa que eu só arrumo depois do almoço porque minha manhã já é uma novela mexicana.


Das 14h às 16h estudo com tédio,e presto serviço a um velho insuportável, mas é a renda que me cabe atualmente, então abri um sorriso e só continuo, porque a motivação foi comprar pão e nunca mais voltou. Depois disso, estudo mais um pouco com a filha, brinco, perco no jogo da dama, rio pra não chorar.


Às 17h já tô preparando o jantar, me enfiando no banho, e me jogando no sofá pra ver meus programas favoritos: Largados e Pelados, Geordie Shore, e CatFit — porque nada como ver gente surtando na TV pra lembrar que minha vida até que tá sob controle.


Janto. E vou dormir cedo. Porque a deusa aqui acorda cedo também.

E assim se repete, há 5 meses, a rotina da quase deusa cansada, disciplinada, mas entediada.

Se não mudar logo, eu mudo. De planeta.


quarta-feira, 11 de junho de 2025

Entre a urgência e a esperança SUS




 O colapso do SUS não é uma exceção, é o cenário constante em muitas regiões do Brasil — e no Nordeste, isso se intensifica. Quem depende do sistema por aqui já entendeu que esperar é rotina. Consultas marcadas pra meses depois, exames que viram promessa e cirurgias que parecem nunca chegar. Enquanto isso, a dor continua, a ansiedade corrói e o corpo segue ignorado pelo Estado.


Mesmo com tudo isso, ainda é o SUS que acolhe quando ninguém mais acolhe. Ainda é o posto de saúde que abre as portas pra quem não tem convênio. Ainda é o hospital público que salva vidas quando a única alternativa seria morrer esperando.


A gente só lembra do SUS quando precisa. Quando o corpo falha, quando a dor aperta, quando a vida exige urgência. Mas por trás da espera nas filas, dos corredores lotados e dos atendimentos que às vezes frustram, existe um sistema que ainda é um dos maiores feitos do Brasil.


Criado para ser universal, gratuito e igualitário, o SUS carrega um sonho coletivo: o de que saúde é direito, não privilégio. Quem já precisou de uma ambulância, de uma vacina, de um atendimento médico sem ter um real no bolso, sabe o que isso significa. O SUS está em todos os lugares: no posto da esquina, no hospital universitário, na campanha de vacinação em massa, no remédio que chega de graça na farmácia.


Mas não dá pra romantizar. Quem vive a rotina do SUS – pacientes e profissionais – também vive o colapso. Falta estrutura, falta respeito, falta gestão. Médicos exaustos, profissionais mal pagos, sistemas travados, desorganização que adoece mais do que cura. E o povo, como sempre, é quem paga a conta da negligência pública.


Ainda assim, resistimos. Porque o SUS é resistência. É o que sobra quando tudo falta. É onde o Brasil mostra que sabe cuidar, mesmo com pouco. Só que o pouco não pode ser normalizado. A gente merece mais do que o mínimo. O SUS merece mais do que sobrevive.



Pontos positivos do SUS


  • Universalidade: qualquer pessoa pode ser atendida, sem distinção.
  • Gratuidade: consultas, exames, cirurgias, vacinação, tudo sem custo direto.
  • Abrangência: está presente em todos os municípios do Brasil.
  • Reconhecimento internacional: é referência em campanhas de vacinação e transplantes.
  • Farmácia Popular: acesso gratuito ou com desconto a medicamentos essenciais.



Pontos negativos do SUS


  • Falta de investimento: recursos escassos comprometem o funcionamento.
  • Infraestrutura precária: hospitais e postos muitas vezes sucateados.
  • Longas filas de espera: especialmente para consultas com especialistas e exames.
  • Desigualdade regional: o Nordeste sofre mais com escassez de médicos e estrutura.
  • Desvalorização dos profissionais: salários baixos e sobrecarga.


domingo, 8 de junho de 2025

BONINAL, BAHIA — conheça

Imagem ilustrativa 


 Boninal é uma cidade pequena, localizada na Chapada Diamantina, interior da Bahia. Tem cerca de 12 mil habitantes e uma vida que corre num ritmo lento — às vezes, lento até demais. A economia gira em torno da agricultura familiar, da pecuária e dos empregos públicos. O comércio é modesto, o turismo é pouco explorado, e o que move a cidade, de verdade, são as tradições culturais, os festejos religiosos e a política que insiste em se alimentar da ignorância coletiva.


É um lugar onde quase todo mundo se conhece. Onde os sobrenomes se repetem, as histórias se cruzam e as oportunidades se concentram. Onde a sensação de pertencimento existe, mas a de crescimento… não. Porque Boninal está estagnada.


Sete meses. Esse foi o tempo necessário para que eu enxergasse o que muita gente daqui finge que não vê. Boninal é um exemplo vivo de como o tempo pode passar e quase nada mudar. É uma cidade parada. Estancada num ciclo vicioso onde a política não serve à população — serve a ela mesma.


Vamos falar do posto de saúde? Um dos mais utilizados pela comunidade está a mais de 10 km de distância. Um absurdo para quem precisa de atendimento básico, não tem carro e nem estrutura pública pra chegar até lá. Isso é exclusão. Isso é desprezo pela vida.


As ruas? Tem rua com calçamento iniciado e abandonado, como se a obra fosse só uma encenação. Começam, fazem barulho nas redes sociais, somem. Nenhuma explicação. Só buraco, lama e poeira. A obra do hospital então… é um capítulo à parte. Começaram há anos, prometeram mil vezes, e até hoje não concluíram. Enquanto isso, quem precisa se vira como pode. Porque depender do sistema aqui é o mesmo que depender da sorte.


Quer trabalhar? Boa sorte se não for parente ou amigo dos mesmos de sempre. Os empregos giram entre panelinhas. Já os ônibus escolares, que deveriam oferecer segurança, são velhos, caindo aos pedaços, com monitores despreparados e um trajeto absurdo que deixa crianças a mais de 2 km de casa. Isso é transporte público ou abandono disfarçado?


E a Coelba? Essa é campeã de desrespeito. Tem pedido de extensão de rede elétrica esperando há mais de um ano. Um ano inteiro sem resposta. Como se gente pobre não tivesse direito a energia.


Mas aí vem o São João e a prefeitura gasta alto com cantor famoso, som, palco, camarote. Pro show tem verba. Pro essencial, só desculpa. É a cultura do barulho e da maquiagem pública.


A tal “Academia dos Idosos”? Passei por ela. Estrutura vazia. Nenhuma atividade acontecendo. Mas os bajuladores estavam lá, sorrindo como se tivessem entregue uma revolução. É enfeite pra parecer ação. E só.


Fizeram uma ciclofaixa no meio do mato, mal iluminada, mal pensada. Enquanto isso, a comunidade de Guaribas — onde realmente se caminha e se pedala — segue esquecida. Teria sido muito mais útil e barato levar a ciclofaixa pra lá. Mas pra que pensar no que serve, se dá pra fazer o que aparece bem na foto?


A cidade não cresce. Boninal não anda. Os projetos públicos não atendem quem mais precisa. Criaram um programa pra distribuir frutas e verduras — boa ideia. Mas péssima execução. Subestimaram a demanda. A organização foi desastrosa. E os mais vulneráveis — mães solo, idosos, pessoas com fome real — ficaram por último.


Em Guaribas, o problema da água é uma novela. Casas da parte baixa ficam dois, três dias sem uma gota, enquanto outras têm abastecimento normal. Isso não é só desigualdade. É má gestão escancarada.


A coleta de lixo não atende com frequência as casas mais afastadas. É obrigação da prefeitura. Mas parece que a obrigação aqui só vale pro eleitor, nunca pra quem foi eleito.


O que dizer dos cães de rua? Proliferação absurda. Nenhum projeto de castração, nenhuma clínica, nenhuma campanha. Já vi quatro cadelas darem cria nos últimos meses. Filhotes largados, doenças se espalhando, e todo mundo age como se fosse normal.


E as donas de casa? Estão invisíveis. Sem incentivo, sem projeto, sem alternativa de renda. Dependem do Bolsa Família porque ninguém se preocupa em dar outra opção. A juventude? Abandonada. Nenhuma campanha decente sobre gravidez na adolescência. Ouvi falar de um caso gravíssimo: um homem preso por engravidar uma criança de 10 ou 11 anos. E o que me revolta não é só o caso — é o silêncio em volta dele. Aqui, sexo ainda é tabu. Muitas mães, mesmo sendo modernas, não sabem como conversar com as filhas. E a escola? Se cala. O resultado é uma geração de crianças grávidas de outras crianças, dependendo de ajuda do governo, vivendo sem referência.


Imagina se essa cidade não tivesse prefeito? É só uma ideia de como isso aqui pode ter sido antes.

Se as decisões fossem tomadas por todos, em comum acordo?

Se os gastos fossem publicados?

Se os projetos fossem concluídos?

Se as obras fossem rápidas e eficientes?

Se o atendimento fosse justo, educado e organizado?


Qual seria a qualidade de vida dos idosos dessa cidade?

Qual é a renda média das mulheres?

Quantos estão desempregados?

O que tem sido feito a respeito?


Nada.

Boninal parece estar confortável na própria estagnação.

E enquanto a cidade dorme, quem tem consciência fica insone.


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Somos escravos de sonhos que não sonhamos

Nem tudo que você deseja é seu — às vezes é só o sistema usando sua cabeça.



 Carro, celular, banco, bebida… tudo é apresentado como essencial. Mas no fundo, são desejos implantados. Propagandas fantasiadas de necessidade. O consumo se tornou religião e o estilo de vida, uma coleira. A maioria sonha com o que viu numa vitrine ou no feed. Nada disso é genuíno. É apenas combustível para um sistema que precisa de gente desejando coisas que não precisa — pra continuar girando, sugando tempo, energia e identidade.

E no fim do dia? A engrenagem revela seu lado mais raso: tudo gira em torno da validação. Do sexo. Da conquista. Da imagem. Homens fantasiam carros não pela função, mas pela ideia de que isso abre portas para o prazer. E não é mentira. Muitas mulheres ainda se colocam como prêmio de consumo, como se um banco de couro justificasse a entrega do próprio corpo. Não julgo, mas observo: isso diz muito mais sobre o vazio que tentam preencher do que sobre o objeto em si.

A desculpa biológica vem sempre pronta: dizem que mulheres “preferem homens com status” e que homens querem “o máximo de mulheres possível”. Mas essa explicação rasa ignora o peso cultural da desigualdade histórica entre gêneros. Essa não é a natureza humana, é o condicionamento. Desde cedo, homens são ensinados a medir valor por poder e acúmulo, e mulheres a vender afeto em troca de segurança. O desejo foi manipulado, doutrinado, dirigido. Quando você repete que isso é “natural”, só está normalizando uma estrutura que favorece os mesmos de sempre — e que nunca foi neutra, nem justa.


Chamam esse tipo de pensamento de ideologia , mas o fato mesmo é o mundo onde a única coisa que funciona é o acúmulo. Onde poucos têm muito e muitos não têm nada — e ainda são convencidos a agradecer por isso. O comunismo não falhou, ele foi sabotado. Assusta justamente porque propõe redistribuição num sistema que sobrevive do desequilíbrio. Não é utopia achar que todos merecem acesso ao básico, é delírio acreditar que só é possível viver bem às custas do sofrimento alheio.


Dizer que “na prática não funciona” é fechar os olhos para o fato de que o capitalismo também não funciona — a não ser que você esteja no topo da cadeia. Enquanto isso, há gente morrendo de fome ao lado de supermercados lotados. A verdade é que ideias saudáveis incomodam porque desmontam privilégios. E liberdade real exige confronto com as verdades que preferem esconder sob o tapete do conforto.

Não sonho com o que me mandaram sonhar. Isso não é comunismo, é lucidez. A liberdade começa quando você para de confundir ter com ser.

Em fim vou dormir. Que é de graça, e ainda me protege dos delírios do sistema.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

Perdão é só um Ctrl+Z



Porque às vezes, o perdão não passa de um atalho elegante pra repetir o erro — com bênção inclusa.


 Perdão é aquele negócio que a gente romantiza porque dá status de alma elevada. Um tipo de medalha invisível no peito: “olha como eu sou evoluído, eu perdoo até quem me chutou no chão”. A verdade? Perdão virou só um Ctrl+Z espiritual — uma tecla mágica pra apagar a culpa, sem ter que lidar com as consequências. Mais uma mentira bonita pra aliviar a consciência e seguir pecando com categoria.

A indústria do perdão opera no modo fast-food: tudo rápido, superficial e cheio de conservante emocional. Não tem nem digestão. Você mal foi ferido e já é pressionado a “seguir em frente”, “entender o lado do outro”, “liberar o perdão pra não adoecer”. Como se curar fosse sinônimo de ignorar. O agressor agradece, claro — afinal, poucas coisas são tão convenientes quanto um coração mole e espiritualizado.

Pedir perdão hoje em dia virou um ritual performático. Gesticula com as mãos, lacrimeja no canto do olho, emite um “eu não sabia o quanto te machuquei” com voz trêmula e... pronto! Reset moral ativado. E o melhor: se a vítima perdoa, ainda sai como a iluminada do rolê. Se não perdoa, vira a amarga, a rancorosa, a que “não superou”. Que conveniente, né?

O perdão virou capital emocional. A gente distribui como se fosse doce em dia de Cosme e Damião, esperando que o universo dê pontos de luz e um pix de karma positivo. Enquanto isso, quem perdoa demais vira depósito de lixo emocional, enchendo o HD da alma de mágoas “resolvidas” que só foram jogadas pra debaixo do tapete.

E não, isso aqui não é uma ode ao rancor. É só um lembrete de que perdão sem consequência é só permissão camuflada. Perdoar alguém que não muda é como assinar contrato de burrice afetiva vitalícia.

Então, da próxima vez que alguém pedir perdão com voz mansa e olhar de cachorro que caiu da mudança, pergunte: você quer mesmo se redimir... ou só garantir que pode errar de novo com um pouco mais

 de calma?

sexta-feira, 30 de maio de 2025

A Rua Como Escolha: Quando a Calçada Vira Casa

 



Muitas vezes, ao falar de moradores de rua, nos limitamos ao olhar da piedade ou do julgamento. Supomos que toda pessoa sem teto quer, ou deveria querer, sair dessa condição. Mas e se, para alguns, essa vida já não for mais uma fase — e sim um estilo de vida?

É difícil aceitar que alguém possa ter escolhido a rua, ainda que essa escolha tenha vindo de um acúmulo de dores, decepções e portas fechadas. Mas a verdade é que o ser humano se adapta ao que vive, e com o tempo, começa a chamar de lar o que antes era só passagem. A marquise vira teto, o cobertor doado vira aconchego, a rotina da praça substitui o relógio de ponto. Há quem viva assim há anos — não mais esperando uma salvação, mas defendendo o pouco que conquistou no asfalto.

Isso não significa romantizar o abandono. É entender que a realidade das ruas não se resume à fome ou ao frio. Existe um universo próprio, com regras, laços, convivência e até certo senso de pertencimento. Muitos rejeitam abrigo não por orgulho, mas porque já tentaram se encaixar no que a sociedade oferece e foram descartados. Outros nem tentam mais. Criaram suas próprias rotinas, decidiram não depender de normas, não obedecer a um teto que cobra silêncio, hora pra dormir ou documentos em dia.

E assim como quem escolhe o campo, a praia ou a cidade grande, tem também quem fique na rua por se sentir mais livre, mais dono de si. Porque a rua, apesar de dura, oferece uma forma crua de liberdade. Pode parecer contraditório, mas tem gente que encontrou mais dignidade dormindo no chão do que mendigando respeito entre quatro paredes.

É claro que existem milhares em situação de rua que desejam sair dela, e precisam de políticas públicas urgentes para isso. Mas há também aqueles que não querem mudar — ou não veem por que deveriam. A vida os moldou de um jeito que o mundo “normal” já não serve mais. E quem somos nós para dizer que a vida deles está errada?

A gente se adapta ao que escolhe, e com o tempo, passa a defender essa escolha como um território conquistado. Talvez os moradores de rua estejam nos mostrando isso sem dizer uma palavra: que viver também é aprender a se abrigar do jeito que dá, mesmo que seja embaixo de uma ponte. Porque nem sempre a casa é onde mora o conforto — às vezes, é só onde mora a coragem de continuar.


quinta-feira, 29 de maio de 2025

“Saúde Que Lute, o Que Importa É o Piseiro”

Ah, nossa amada cidade! Meses atrás, comemoramos o aniversário da cidade com dois dias de pura farra, cada um recheado com mais de cinco cantores — porque, claro, a prioridade é fazer o povo dançar, não andar em rua calçada. E agora, pra não perder o embalo, temos três dias inteiros de festa junina, com fogueira, forró e aquele cheiro de milho cozido misturado com promessas não cumpridas.

Enquanto isso, nas ruas das comunidades vizinhas, o calçamento tá igual promessa de político: começa, para, some, reaparece só quando dá ibope. A única coisa que avança é o mato. E o posto de saúde? Ah, uma comédia! Um médico só (isso quando aparece), e um time de enfermeiras que atuam como fiscais do padrão local: olham pra sua cara, perguntam de onde você é e decidem ali, no olho, se você merece ser atendida. Se não falar no sotaque certo ou usar o short jeans sagrado com a blusinha de malha justa, já era. Dizem que seu nome não tá na ficha sem nem olhar. Haha típico .

Isso aconteceu comigo, 2022. Fui tomar a vacina da COVID, inocente, achando que era cidadã como qualquer outra. Esqueci que aqui atendimento é por afinidade, não por necessidade.

Ah, e se por um milagre você for atendida e o médico te pedir exames... já prepara o coração. A média de espera é de 10 a 11 meses. Isso mesmo: quase um ano pra saber se tem algo errado com sua saúde. Até lá, vai que o problema se resolve sozinho — ou você morre antes, o que economiza pro SUS.

Desde então, Seabra virou minha capital oficial. Faço tudo por lá. Porque, me perdoem os patriotas da terrinha, mas esse lugar não vai pra frente enquanto as vagas de emprego forem preenchidas por “primas da prima da cunhada” que mal sabem ler, quanto mais falar com alguém sem grosseria. Só ocupam espaço e barram quem realmente entende do que tá fazendo.

Depois de quase cinco meses por aqui, entendi direitinho o estigma: "baiano é preguiçoso". Não somos todos, claro. Mas a cultura do “deixa assim mesmo”, do “resolve depois”, do “mas vai ter festa, viu?”... essa aí pega. A gente adora tudo mastigado, e qualquer espantalho que sorria já nos engana.
Falta calçamento? O hospital tá em obras há mais de dois anos? Bota trio elétrico, chama umas bandas, enche a praça de som, e pronto: anestesia coletiva. O povo bebe, dança e acha que tá tudo certo.
Então é isso. Viva as festas juninas! Viva os dois dias de aniversário da cidade! Viva a ilusão bem embalada, com bandeirinha colorida e licor debaixo do braço. Porque aqui, se a realidade incomoda, a gente toca um forrozinho e faz de conta que tá tudo bem.

Manual de sobrevivência para almas inquietas em cidades pequenas.

Acordei entediada. De novo.
Não é sono, não é preguiça, não é falta de café — é tédio mesmo. Um tédio tão denso que podia ser cortado com uma faca cega dessas que só servem pra passar margarina. E o pior: acordei assim num lugar que tem CEP, mas não devia nem ter nome.
Chamar isso aqui de “cidade” é um exagero digno de novela mexicana. Aqui não tem vida, tem manutenção de existência. Acorda, respira, reclama do calor, olha pro celular, não tem nada, olha de novo, ainda nada. Sai na rua, vê sempre as mesmas três almas penadas que fingem ser gente feliz no Instagram. Ate a fofoca morreu, mas isso também não iria acrescentar em nada.
Parei de beber. Não por moral, mas por pura lógica: o álcool me dava a falsa sensação de que a vida era interessante. Só que agora nem isso. Me entorpecer pra acordar no mesmo quarto, com a mesma parede descascada e o mesmo feed cheio de casal clichê postando “meu porto seguro”? Ah não, obrigada. Tô sóbria e miseravelmente lúcida.
E olha que beleza: com a sobriedade vem o bônus — a consciência plena de que amanhã vai ser igual.
Ninguém fala disso. Todo mundo finge que está tudo bem. E se você ousa dizer que tá entediada, cansada, angustiada, sempre tem uma iluminada do grupo do WhatsApp que solta um “ah, mas agradece, podia ser pior”.
Sim, podia. Eu podia estar num lugar pior. Tipo… aqui.

Se eu for na padaria, encontro a mesma senhora que fala da vida de todo mundo. Se eu for na farmácia, o atendente me chama pelo nome e pergunta se “é a mesma de sempre” (como se fosse normal ter remédio fixo igual assinatura da Netflix). Se eu andar três quarteirões, já dei a volta no mundo. E aí volto pra casa com uma sensação horrível de que estou parada no tempo, só envelhecendo de corpo, enquanto a alma bate na parede querendo ir embora.
Eu queria movimento, queria caos, queria gente estranha, queria ver um desconhecido bonito na rua e nunca mais cruzar com ele. Queria ter onde me perder, porque aqui eu já me acho de olhos fechados. Sempre no mesmo lugar, sempre na mesma falta de coisa.
E eu sei, tem gente que gosta. Que ama essa “paz”, essa “tranquilidade”. Mas eu não fui feita pra isso.
Esse lugar me cansa. Me esvazia. Me drena.
E o pior? Nem barulho tem. Só o som do tédio berrando dentro de mim.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

EP 2 - Selva de pedras, coração de concreto

 O que eu vi quando todo mundo olhava para frente 



Eu tinha acabado de chegar em São Paulo. Fazia poucos meses e tudo ainda era novidade. A cidade gigante, os prédios absurdos, as luzes, os cheiros, as pessoas — tudo em excesso, tudo vivo. Fui ao centro, como quem quer conhecer o coração de SP. E que coração estranho.

Tantas coisas bonitas. Arquitetura imponente, lojas, música, comida por todos os lados. Era tudo tão rápido. Um entra e sai de gente, passos apressados, olhos grudados nos celulares, nos relógios, nos próprios mundos. Mas no meio desse movimento todo, o que mais me chamou atenção… foi o que estava parado.

Os moradores de rua.

Eles estavam ali, como se estivessem presos numa outra velocidade. Em câmera lenta, enquanto o resto da cidade parecia acelerado em 2x. Cobertores rasgados, sujos, corpos deitados no chão frio, olhares perdidos. Não havia urgência neles. Nem pressa. Nem direção. Só existência.

E o mais estranho é que ninguém os via. Ou fingia não ver. As pessoas desviavam como se fossem postes, obstáculos. E seguiam. Rápidas, eficientes, focadas. Ninguém parecia se perguntar: quem são essas pessoas? Por que estão aqui? O que aconteceu com elas?

São Paulo não era a cidade das oportunidades?Passei por um, por outro. Um cachorro ao lado. Um papelão improvisado como cama. Um saco de roupas. Um pedaço de pão seco na mão. E a vida… continuava.

Quando cheguei em casa, não estava mais tão maravilhada. A tal “selva de pedra” começou a fazer sentido. Onde o filho chora e a mãe não vê. Onde a dor é abafada pelo barulho. Onde o que incomoda é simplesmente ignorado.

Mas São Paulo também é isso: o berço de maloqueiro bom, como dizem. Gente que luta, que corre atrás, que resiste. Inclusive eles. Os que dormem na rua. Os invisíveis. Porque não escolheram lutar do lado certo ou do lado errado — escolheram viver. Da forma mais difícil.

E, pensando bem… talvez eles tenham menos preocupações que a gente. Não pagam boleto, não batem ponto. Mas a luta deles é outra. É interna. E a mente, ah… a mente não tira folga. Trabalha 24 horas, sem hora extra, sem fim de semana. Lutar com o mundo já é difícil, mas lutar com você mesmo é mil vezes pior.

Essas pessoas são guerreiros. Guerreiros de si mesmos. Das batalhas silenciosas, das dores que ninguém quer ver, da invisibilidade, da fome, do frio, da sede, do calor, da vida.


Entre o corpo e a alma— Resquícios

Sentir, logo cedo, o pulsar do meu coração mais acelerado que antes. Ao abrir os olhos, percebo mais um lindo amanhecer. Estou imóvel por um...