sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Entre o corpo e a alma— Resquícios

Sentir, logo cedo, o pulsar do meu coração mais acelerado que antes. Ao abrir os olhos, percebo mais um lindo amanhecer. Estou imóvel por uma fração de segundos; perco o sentido de quem sou, onde estou e o porquê de todas as coisas. Nunca me ocorrera antes tal questionamento inconsciente.


Logo volta a mim a consciência que me fugira. No entanto, ainda assim, indago a mim mesma a respeito das questões da vida: por que uns fardos são mais pesados do que outros?




Penso na criança que fui. Naquela que carregou o que não era dela, que guardou calada o peso do desejo dos outros. Refiro a mim mesma, quanto todos os gritos silenciosos deveriam ter sido ouvidos, quando em meus olhos O medo que morava logo virou ódio. Depois, só sobrou dor.


Inexplicável o que se sente, incompreensível o que se ouve. E ainda hoje, lamentavelmente resquícios de memórias afligem camadas intracelulares que vão para além do meu corpo — feristes também minha alma.

Ferida que não cicatriza Dor que não se passa, o sorriso se tornou minha maior arma.





Próximo Tema— Mim Permitindo…


quarta-feira, 23 de julho de 2025

Silêncios que Machucam

Nas pequenas cidades do interior do Nordeste, onde todo mundo conhece todo mundo e as fofoquinhas correm mais rápido que carro em estrada de barro, os crimes nem sempre fazem barulho. Eles chegam mansos, vestidos de cotidiano, escondidos entre a missa, a feira e o cafezinho na calçada. São os pequenos crimes — aqueles que ninguém chama de crime porque “é assim mesmo”, porque “sempre foi”, porque “não deu em nada”.

Esses crimes silenciosos, porém cruéis, fazem vítimas que quase nunca têm voz: crianças, adolescentes e idosos.

Na infância, o crime mora na negligência disfarçada de normalidade. Meninas de 11 anos sendo tratadas como mulher por homens que “só tão brincando”. Meninos empurrados pro trabalho pesado, como se carregar saco de cimento fosse batismo de gente forte. Crianças crescendo rápido demais, sem infância, sem proteção, sem denúncia.

Na adolescência, o crime se infiltra na escola que fecha, na ausência de políticas públicas, na sexualização precoce e no abuso velado — aquele que o tio faz, o padrasto nega, e a mãe prefere não saber. Adolescentes engolindo o choro, aprendendo a sobreviver calados, porque "quem manda muito apanha", e porque "ninguém vai acreditar mesmo".

E quando chega a velhice, o crime ganha a forma de abandono. De uma aposentadoria usada por quem não trabalhou. De remédio que falta, de agressão dentro de casa, de solidão que ninguém nota. Idosos tratados como peso, esquecidos em redes vazias enquanto os filhos “vão resolver a vida” na cidade grande.

A pior parte desses crimes não é só que eles acontecem — é que eles são permitidos. O silêncio coletivo protege os agressores. A vergonha cala as vítimas. E o medo de “mexer com gente de nome” paralisa qualquer tentativa de justiça.

Mas justiça não deveria ser um favor. Justiça é o mínimo.

É hora de falar desses crimes com o nome que eles têm. É hora de proteger os pequenos — não com promessas, mas com ação. É hora de cuidar dos velhos — não com pena, mas com dignidade.

Porque numa cidade pequena, a dor também ecoa grande. E não existe futuro se a infância é ferida, se a juventude é silenciada e se a velhice é descartada.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Hoje a leonina está sensível… e quer colo, não conselhos

 


Tem gente que olha pra ela e pensa: “essa aguenta tudo”.

Porque não chora em público, porque não faz escândalo, porque não vive se queixando.

Acham que ser forte é natural pra ela. Que ela nasceu pronta. Mas não enxergam o preço.


Ela não tem tempo pra “mimimi” — não porque não sente dor, mas porque se parar pra sentir, desmorona. E ninguém aparece pra recolher os pedaços.

Então ela engole, se arruma, cuida da filha, resolve os boletos, dá risada na rua e segue.

Segue como quem tem pressa, mas às vezes queria mesmo era só parar. Respirar. Ser cuidada.


Ser forte virou obrigação. Porque se mostrar frágil é abrir espaço pra julgamento. “Tá querendo chamar atenção.” “Sempre tem um drama.” “Mulher preta tem que ser guerreira.”

Ela escuta isso sem que ninguém diga. Vem no olhar, no tom, no jeito que esperam dela maturidade, equilíbrio, resistência.


Mas hoje, não.

Hoje a leonina tá sensível. Não quer ouvir “vai passar”, “você é forte”, “segue em frente”.

Ela só quer um colo quente, um silêncio seguro, um cafuné que não cobre nada em troca.

Hoje, só por hoje, ela quer existir sem armadura. Sem ter que se explicar. Sem precisar provar que dá conta.


Porque mesmo as mais fortes merecem descanso.

Mesmo as que parecem inteiras, às vezes só querem ser abraçadas por alguém que entenda:

ser firme o tempo todo também machuca.




sexta-feira, 18 de julho de 2025

⸻ “Mulata” não é elogio. É disfarce.

 


A ingenuidade — ou a ignorância que insiste em se manter confortável — é uma praga silenciosa.

Ela tá no meio da sociedade, passando de boca em boca, como se nada fosse. Como se palavras não tivessem peso. Como se a história não tivesse deixado cicatriz.


Você tá num ambiente qualquer, toda linda, com sua cor acesa, com sua presença forte.

E aí vem um cara — branco ou até mesmo preto — com aquela pose de gostosão, sorriso torto, ar convencido, e solta:

“E aí, mulata, gostosa…”

Ou pior, fala achando que tá elogiando.

Fala como quem te coloca num pedestal, mas com os olhos lá embaixo, entre suas pernas.


E lá vou eu, mulher preta, adulta, consciente, dar aula pra gente crescida.

Explicar que “mulata” não é charme, não é carinho, não é nada além de um insulto polido.

É o resquício da mentalidade escravocrata que ainda nos enxerga como produto — não como pessoa.


Porque o termo “mulata” vem de mula: animal híbrido, nascido da mistura de cavalo com jumenta.

A palavra carrega no som o veneno da desumanização.

Historicamente, foi usada pra nomear a mulher preta de pele mais clara, que “servia” no fundo das casas, mas também na cama dos senhores.

Era a mulher que não era branca o suficiente pra ter direitos, nem preta o bastante pra ser poupada do desejo animalizado do colonizador.


E até hoje isso escorre pelos cantos da cultura.

A “mulata do samba”, a “mulata do carnaval”, a “mulata do pecado” — tudo isso reforça a ideia de que a mulher preta só tem lugar se estiver disponível, dançando, sendo olhada.

Mas nunca como potência, nunca como sujeito. Só como corpo.


Não é inocente. Nunca foi.

Quem ainda chama uma mulher de “mulata” revela o quanto ignora a história, ou pior: sabe, mas não se importa.

Porque é mais fácil manter o termo, rir da situação, do que rever os próprios preconceitos.


A gente já aguenta demais. E não precisa aceitar mais isso.

Se o seu elogio vem de uma palavra que desumaniza, guarda ele pra você.


Aqui, o que queremos é respeito.

E pra mulher preta, o mínimo deveria ser o básico. Mas até isso a gente ainda precisa ensinar.


sexta-feira, 11 de julho de 2025

Ela não pediu colo. Nunca precisou.

 


Ela aprendeu cedo a se fazer abrigo. Enquanto outros buscavam consolo, ela se tornava chão. Era o tipo de mulher que se reerguia em silêncio, com os próprios braços, e ainda estendia a mão pra quem precisasse. Não porque quisesse provar algo, mas porque sabia que esperar já a fez perder tempo demais.


Carregava no olhar a firmeza de quem já foi desacreditada, mas nunca se perdeu de si. Tinha dias em que o peito pesava mais do que os ombros aguentavam, mas ainda assim, ela ia. E ia inteira. Sem metade, sem desculpas, sem maquiagem emocional.


Não romantizava a própria força. Apenas não via outra opção além de seguir. Tinha em si uma coleção de feridas bem cuidadas — cicatrizes que não viraram bandeira, mas memória. Doía às vezes, claro. Mas era uma dor conhecida, mansa, que lembrava a ela quem é.


Ela nunca pediu colo. Não por orgulho. É que aprendeu, entre tropeços e silêncios, que colo demais pode embriagar, pode atrasar. E ela sempre teve pressa de viver — mesmo quando tudo doía.


Não vivia com armadura, mas com estrutura. Era sensível, mas não frágil. Sabia ouvir, sabia calar, sabia cortar laços sem culpa quando o coração deixava de caber ali. E por mais que, às vezes, sentisse falta de um ombro, ela seguia. Porque o mundo nunca parou pra perguntar se ela estava bem — então ela parou de esperar.


Hoje, depois de tanto atravessar, ela encontrou o que nem sabia que procurava: paz. Não uma paz ensaiada, não uma calmaria superficial, mas aquela que vem depois da tempestade, quando tudo desacelera e o silêncio já não ameaça — conforta.


Mas a mente, acostumada ao caos, ainda não entende. Ainda vasculha o horizonte como quem espera a próxima dor. Porque quem sobrevive por tanto tempo em estado de alerta não desliga do dia pra noite. Mesmo em tempos bons, ela anda com cautela. E não é medo — é memória.


Ainda que esteja tudo bem, ela não se entrega ao conforto. Não porque não queira, mas porque aprendeu a seguir mesmo sem chão. E talvez seja por isso que continue firme: não porque precise lutar sempre, mas porque já não sabe viver de outro jeito. A paz chegou. Só que ela ainda precisa ensinar a própria alma a descansar.


E esse texto é sobre mim. O blog, na verdade, se tornou uma extensão do que não cabe mais em silêncio — uma espécie de desabafo que sangra bonito. E a você, que talvez se reconheça aqui… a quem, sem querer, magoei com meu jeito bruto de me apegar rápido e ir embora ainda mais depressa: não te devo desculpas. Retiro as que pedi. Você teve o melhor de mim por um tempo. Ao invés de me culpar por ter partido, talvez devesse agradecer por ter se sentido vivo.


Foi só isso que eu deixei: um motivo, uma lembrança boa, um suspiro fora do roteiro. Nada mais. Ninguém nunca me mereceu por completo — nem por tempo demais. Desfrutem da memória que essa jovem senhora teve a generosidade de oferecer. Porque mesmo quando ninguém me abraçou inteira… dentro de mim, eu apreciei por completo a intensidade.


terça-feira, 8 de julho de 2025

O que ninguém viu


Sobrevivi ao que me atravessou em silêncio — e sigo inteira, mesmo com as marcas que não cicatrizam por fora.





 Há dias, me perguntaram qual foi a dor mais forte que eu consegui suportar.

Fiquei em silêncio, não porque não soubesse.

Mas porque certas dores são como quedas que a gente esconde por vergonha.

Doeu tanto que nem sempre tenho coragem de lembrar, muito menos de falar.


Pensei nas dores físicas.

Já senti.

Corpo moído, noites sem dormir, fome sem apetite, dor que sobe pelo peito como uma corrente elétrica.

Mas nenhuma dessas me deixou tão marcada quanto a dor que veio de dentro.

A dor que ninguém viu.

Aquela que você segue respirando por puro instinto, mas já não sente que está viva.


Doeu quando não podia confiar em ninguém.

Doeu crescer sem o amparo emocional que toda criança merecia.

Doeu me tornar mulher com os traumas de menina ainda doendo no corpo e na alma.

Mas o que mais doeu foi o que ninguém viu.

Foi o que ninguém segurou.

Foi o que ninguém perguntou.

Sobrevivi a abusos que me tiraram o chão,

A perdas que me roubaram a fé,

A dias que comecei no automático e terminei em prantos.

Já precisei ser forte quando tudo que eu queria era colo.

Já me calei pra não causar incômodo.

Já chorei trancada no banheiro pra depois sair e fingir que tava tudo bem.


Teve um tempo em que minha força era só sobrevivência.

Hoje, eu transformo essa dor.

Escrevo, falo, grito em silêncio quando preciso, mas não escondo mais de mim.

Não espero que me entendam — espero que respeitem.

Porque ser quem eu sou custou caro.

E eu paguei com a alma em pedaços, mas paguei.

Ainda sinto. Ainda carrego as marcas.

Mas sigo viva.

Mais inteira do que ontem.

Mais minha.

Mais consciente de que viver não é sorrir o tempo todo,

Mas não se perder completamente quando o mundo desaba.


E sim, sobrevivi.

Porque como disse Carlos C.,

“algumas dores não são feitas para serem esquecidas, mas para serem transformadas.”

E talvez, esse seja o meu milagre:

Transformar o que me feriu em força,

E seguir… mesmo ferida.


_


Texto adaptado e inspirado no original de Carlos C.

Que escreveu o que tanta gente sente, mas não sabe dizer.


segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Quando a paz assusta”

 



Depois de sobreviver a tudo, ela estranhou o silêncio. Não sabia mais viver sem dor.

 


Ela chegou dizendo que não sabia mais o que estava fazendo ali.

“Eu tô bem. Minha vida tá boa. Não tem mais nada me machucando.”

Falou com uma tranquilidade que assustava, como se dissesse: “a dor acabou, então não preciso mais ficar aqui”.


Ela sempre foi rápida pra reagir. Aprendeu cedo que não dá pra ficar parada esperando o mundo ser justo.

Cresceu achando que força era sobrevivência.

E sobreviveu.

A tudo.

Ao abandono.

Às expectativas dos outros.

À falta de amor na hora errada.

Aos silêncios.

Ao caos.

Sobreviveu ao abuso.

Às perdas que ninguém soube consolar.

Às dores que ninguém nem viu.


Hoje, ela vive uma fase boa.

Tem gente por perto. Gente que ama e que a ama de volta.

Tem dinheiro entrando, tem tranquilidade emocional.

Está apreciando o sentimento raro de viver sem pressão.

Sem ter que se provar.

Sem correr atrás de aceitação, nem fugir de rejeição.

Só vivendo.


E mesmo assim… tem alguma coisa ali.

Um incômodo sutil.

Como se estivesse tudo certo demais.

Como se, pela primeira vez, ela estivesse fora da guerra — e não soubesse o que fazer com as mãos.


A terapeuta tentou chegar perto.

Disse que ela não precisa ser forte o tempo todo.

Disse que até a fortaleza mais sólida um dia desaba por dentro se não for cuidada.

Mas ela só deu um sorriso de canto e respondeu: “tô bem, de verdade”.


E talvez estivesse mesmo.

O problema é que ela confundiu paz com ausência de sentido.

Ela não reconhece essa vida sem dor como vida de verdade.

Porque passou tempo demais em modo de sobrevivência — agora não sabe só viver.

Quer adrenalina.

Quer intensidade.

Quer qualquer coisa que faça o sangue correr de novo nas veias como quando tudo doía.


Ela ainda não entendeu que essa fase boa… também é ela.

E que tá tudo bem não ter o que consertar.

Às vezes, o que dá medo não é cair — é finalmente ter chegado num lugar seguro.

E perceber que não tem mais desculpa pra não relaxar.

Que a gente também se assusta com a calmaria quando nunca teve colo.


Entre o corpo e a alma— Resquícios

Sentir, logo cedo, o pulsar do meu coração mais acelerado que antes. Ao abrir os olhos, percebo mais um lindo amanhecer. Estou imóvel por um...